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CRÍTICA: O NATAL DOS SILVA

 Em O Natal dos Silva, o que se vê não é o Natal das propagandas de margarina nem das vitrines iluminadas que escondem a fadiga coletiva de dezembro. É um Natal de corpo presente, onde a mesa está posta, mas o luto senta junto, onde os panetones dividem espaço com mágoas antigas e onde cada tentativa de brindar escancara o que foi perdido, o que ainda machuca, o que precisa ser dito.

A série parte da ausência de dona Zelina, a matriarca, para expor tudo que ficou suspenso entre os que ficaram: raivas mal resolvidas, silêncios acumulados, saudades que doem mais do que o esperado. E nesse processo, faz do encontro de fim de ano um campo de atrito e também de reconstrução.


É raro ver uma produção natalina que fale com tanta naturalidade sobre dor, pertencimento e memória. E mais raro ainda é encontrar uma história como essa, centrada numa família negra periférica, com vozes e vivências tão específicas, tão reconhecíveis.




Os Silva não são caricaturas nem arquétipos genéricos.

São múltiplos, reais, às vezes difíceis de gostar, às vezes difíceis de esquecer. Há ali um cuidado em representá-los com afeto e contradição, em permitir que seus afetos escapem dos rótulos tradicionais, e é essa escolha que torna a série mais viva, mais potente, mais necessária.

Com apenas cinco episódios, nem todos os personagens conseguem se aprofundar tanto quanto poderiam, e algumas trajetórias correm o risco de parecer mais rasas ou simplificadas do que mereciam.

Mas mesmo com esses tropeços, o conjunto funciona como um retrato afetivo e político de algo muito maior: o esforço cotidiano de conviver.

Porque naquela casa, entre abraços desconfortáveis, cochichos atravessados, risadas de quem tenta aliviar o clima e brigas que brotam de ressentimentos antigos, se constrói um microcosmo do que é estar em família, essa entidade que não se escolhe, mas que molda, desafia, machuca e salva.

Há também um gesto interessante na alternância de diretores e estilos visuais, que transforma cada episódio num recorte com identidade própria. Como se cada membro daquela família enxergasse os mesmos dias de formas diferentes, respirando em tempos distintos, reagindo com intensidades que nem sempre se encaixam.

Essa diversidade de olhares traz frescor, quebra a previsibilidade, ainda que em alguns momentos isso traga pequenas flutuações de tom que dificultam a coesão da obra como um todo.

O mérito da série, no entanto, está em se recusar a dourar a pílula. Ela não quer ser doce de Natal, mas espelho de um tempo, de uma ausência, de um Brasil, de uma gente.

Não se trata de transformar a ceia em terapia em grupo, mas de reconhecer que nem sempre a festa apaga as rachaduras.

E que às vezes é nesse desconforto que alguma verdade pode surgir. Uma verdade que não consola, mas aproxima.

Num cenário em que a periferia negra quase nunca aparece em produções de fim de ano, O Natal dos Silva chega como alternativa urgente e cheia de calor humano.

Entre o drama e o humor, entre a crítica social e a esperança, há espaço para tudo, inclusive para aquela sensação agridoce de olhar ao redor da mesa e perceber que, apesar de tudo, ainda se está junto. Talvez não inteiro. Mas junto.

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